25 maio 2007

Com licença

Ontem no café: dois indivíduos (adoro a palavra indivíduo) ao balcão a falar um com o outro. Não estão ao lado um do outro, está um em cada ponta ou quase (mais ou menos 1 metro e meio de distância entre os dois). Chega uma rapariga dirige-se ao balcão (no espaço entre os dois indivíduos) e pede já não sei o quê (o mais certo era ser um Compal de manga-cenoura que a miuda tinha aspecto saudável). Diz um dos homens: "Com licença também se diz". A rapariga fica com cara de parva a olhar para o homem e lá começa o discurso do costume: no meu tempo não era assim, ao menos pede-se licença, mostra-se respeito, bla, bla, bla. Não demorou nem 2 minutos para que a conversa descambasse para uma dissertação sobre a elevada qualidade da sua formação (4ª classe) e a já inevitável comparação com o actual nível de ensino. Estas conversas divertem-me. Qualquer pessoa que diga, a páginas tantas, "dantes na 4ª classe aprendia-se mais que estes agora aprendem até sei lá que ano". A expressão "sei lá que ano" é um must. Porque transmite a imagem pretendida (é preciso estudar muito mais anos agora para aprender o mesmo) sem concretizar, não podendo, por isso, ser refutada. Como os horóscopos. Um gajo não pode dizer que no "sei lá que ano" os putos aprendem história universal, aprendem uma ou duas línguas estrangeiras, estudam a constituição dos seres vivos, a estrutura do interior da Terra, ou os nomes dos planetas do Sistema Solar. Só se pode contra-argumentar se se souber qual o ano concreto a que o homem se refere com "sei lá que ano". E assim convence-se qualquer audiência (predisposta a aceitar tais argumentos, porque toda a gente sabe que dantes é que era bom) da indubitável qualidade do ensino de antigamente quando comparada com o ensino actual. Não faltam também as manifestações de saudade (algo incompreensíveis) em relação às reguadas que se levava por faltas de educação, como falar com o colega, não fazer os trabalhos de casa ou sacar macacos do nariz. E toda a gente concorda, acenando com a cabeça. De certeza que toda a gente já assistiu a elucidativas discussões como esta, com diversos protagonistas, por isso não vale a pena alongar-me muito sobre o assunto. E se nunca tiveram o prazer de assistir a tal conversa façam o seguinte exercício: escolham um qualquer jardim de qualquer cidade onde estejam velhos sentados a apanhar sol. Juntem um grupo de amigos, sendo conveniente que o grupo tenha: pelo menos um rastaman; uma raparida de seios proeminentes e top muito justo com grande decote; um rapaz com jeans coçados e cabelo muito comprido; um ou dois indivíduos tatuados; um casal de namorados com tendência para fazer encoscopias com a língua. Juntem um ou dois jambés, algum tabaco, uma guitarra e de preferência duas litradas de Sagres. E esperem 5 minutos para que os velhos comecem a manifestar a sua opinião. Bom, mas nem era sobre as conversas do antigamente que eu queria falar.

Aquilo de que queria falar é a distância entre pessoas que estão juntas. O episódio de ontem deixou marcas profundas na minha psique (qualquer uso da palavra psique dá a um texto um aspecto intelectual, mesmo que a palavra seja incorrectamente usada) e preciso de desabafar.

Se duas pessoas estão lado a lado, a uma distância normal (20, 30 ou 40 cm), estão claramente juntas e é sinal de falta de educação intrometer-se entre elas. Acho que isto é um facto universalmente aceite. Quem se mete entre duas pessoas tão próximas deve pedir licença. O problema surge quando a distância aumenta. No caso concreto em questão, o balcão do café é em L, com um lado de cerca de 2 metros e o outro com cerca de metro e meio. Uma das pessoas estava quase numa ponta do L, a outra estava na curva. A distância entre ambas era de cerca de metro e meio e além disso não havia mais espaço de balcão para que outra pessoa pudesse dirigir-se à empregada do café (por sinal até é a dona, mas não interessa) para pedir o tal Compal de manga-cenoura, ou abacaxi-pessego ou melão-amendoim ou lá o que era. E contudo o senhor disse, num tom algo exasperado e condescendente (ainda por cima com péssima dicção, mal se percebiam as sílabas) que a menina foi mal educada porque se intrometeu entre duas pessoas que estavam a ter uma conversa e nem sequer pediu licença.

Aqui reside a questão: qual é a distância mínima a partir da qual não é necessário pedir licença para se colocar entre duas pessoas? Não sei qual é a resposta, mas parece-me que um metro e meio é uma distância exagerada para reclamar como espaço privado ocupado por duas pessoas que mantêm uma conversa. Sobretudo tendo em conta o tamanho total disponível. Se isto continua não tarda nada temos dois velhos sentados um de cada lado da Av. da Liberdade, cada um no seu banco de jardim, a falar entre si aos berros e a chamar mal educadas a todas as pessoas que se intrometem entre ambos, incluindo os autocarros da carris que por lá passam.

Eu acho que o princípio base deve ser este: duas pessoas podem reclamar como privado o espaço entre elas e exigir desculpas a todos quantos o invadam desde que consigam tocar na outra pessoa com o cotovelo (sem se debruçar). O que dá mais ou menos uns 30 a 40 cm. Se consigo tocar no meu vizinho com o cotovelo posso exigir que esse espaço seja respeitado por outros. Se por outro lado estou mais afastado, por mais que isso me chateie, o espaço entre nós é considerado público e não tenho o direito de reclamar nada. Por outro lado nenhum par de pessoas pode reclamar como privado a totalidade do espaço disponível. Num balcão de café em que as pessoas estão encavalitadas a beber as suas meias de leite ao pequeno almoço não pode ser reclamada nenhuma distância como espaço privado. Neste caso desde que caiba uma pessoa no espaço deixado vago a pretensão a reclamá-lo como privado caduca.

E acabam-se de vez as discussões.

(nota: este post foi publicado às 14:37; a hora que estão a ver ali em baixo como hora de publicação é a hora do início da escrita do post; é só para verem o tempo que demorei a pensar nestas questões; isto dá muito trabalho, julgam o quê?)

8 comentários:

kanjas disse...

A excepção só se aplica a meias de leite?











(gpaeuhe)

Elora disse...

1. Também acho que as reguadas fzem falta e não sou do tempo das ditas.
2. Essa cena do cotovelo discrimina as pessoas com braços curtos, que passaram a ter menos espaço privado.
3. Acho sacrilégio comer ou beber ao balcão, mas agrada-me muitissimo a ideia de que posso encostar-me ao bom do rapaz do barbeiro em frente só porque sendo café não há espaço privado e ele não pode reclamar.

Nelson disse...

fausto: não só. galões também.

elora:
1. Achas isso _porque_ não és do tempo delas.
2. a vida é injusta.
3. pois, pois...

Ana disse...

Eu não sou do tempo das reguadas, mas levei umas quantas, já para não falar nos puxões de orelhas. E numa professora de música que nos pediu para perguntar em casa se os papás davam autorização que ele batesse nos meninos. Obviamente que eu lhe disse que os meus papás tinham dito ela que se atreva, o que não foi de todo verdade. Aaaah...no meu tempo é que era bão...
Quanto ao espaço privado, qq individuo que se aproxime de mim mais do que meio metro sem a devida autorização, arrisca-se a ficar com um olho cor-do-arcoiris. Portanto, a minha noção de espaço privado é bem vincada. Que o diga a senhora atrás de mim na bicha do Jumbo que não para de espetar o cotovelo nas minhas costas, de me dar com a mala e de me passar a mão pelo fundo das costas (este acto, invariavelmente, é severamente punido com DOIS olhos cor do arcoiris, seja gaijo ou gaija, que eu não sou homofobica).
No meio disto tudo já me desviei do tema principal...

Ana disse...

Em espaços a abarrotar de gente, tb tenho a regra do cotovelo. Mas eu aí estou bem, pois tenho braços compridos e sempre em movimento op op op pa trás e pá frente...se estiverem atrás, ooops, desculpe, mas como vê este é o meu espaço privado.

Redus Maximus disse...

excelente posta rapaz!! Do melhor que te tenho lido! Foram três horas a pensar sobre um tema absolutamente inútil mas que deixaria qualquer um orgulhoso!!

Nelson disse...

inutil?! humpf

Nuno Pereira disse...

Só tu para falares tanto sobre um assunto de importância muito reduzida (no tempo que nos ocupa na vida, pelo menos).