15 maio 2007

Cidadãos automobilizados

É o que não falta por aí. Malta a andar de carro. E já sabemos que "todos diferentes, todos iguais". Todos iguais no meio de transporte, mas todos diferentes na forma de o conduzir, na relação com o automóvel e com os restantes automobilistas, todos diferentes na forma de encarar o código da estrada, as regras da sã convivência, etc, etc.

Vai daí, e como acho que alguém já o deveria ter feito mas ninguém o fez, resolvi catalogar as diferentes espécies que se encontram nas estradas portuguesas. Uma espécie de atlas, mas sem figuras (desculpem lá o mau jeito, prometo que a segunda edição terá bonecos).

OS VÁRIOS TIPOS DE CONDUTORES EM PORTUGAL
Guia prático da fauna das estradas portuguesas


1. O Xoninhas (xoninhum dominicalis)
Este indivíduo caracteriza-se pelo facto de conduzir todos os dias como se fosse domingo. Por essa razão também é conhecido como "domingueiro". Não podemos contar com ele para passar um sinal amarelo, a menos que não o veja (o que é comum). Raramente sabe para onde vai e qual a faixa que deve escolher. Distingue-se de outros tipos por conduzir uma carrinha alemã, tipicamente uma Volkswagen Passat ou Audi, ou um carro francês de gama média (Renaul Megane ou Citroen C4). Encontra-se vulgarmente na faixa do meio em qualquer via de 3 faixas. É habitual que este indivíduo esteja na faixa errada de um cruzamento e apenas quando abre o sinal verde é que faz o pisca. Mesmo que lhe dêm espaço hesita antes de mudar para a vossa faixa, contribuindo para os engarrafamentos. O seu tempo médio de reacção a um semáforo é de 2 a 3 segundos.

2. O Trolha (trolhus communalis)
O trolha (seja ou não trabalhador da construção civil) é um indivíduo que em geral conduz um furgão ou uma carrinha de caixa aberta. Raramente anda sozinho, sendo frequente encontrá-lo com um ou dois colegas. É facilmente identificável pelo vidro aberto e cotovelo de fora e pelo facto de não fazer piscas. O local mais provável para encontrar um trolha (ou a sua viatura) é estacionado em segunda fila. Outros traços característicos dizem respeito à decoração interior da viatura, tipicamente com um emblema do seu clube de futebol ou uma Nossa Senhora de Fátima. É consumidor habitual de ambientadores de pinho. Rádio preferida: Rádio Cidade, Renascença ou RFM. Tempo de reacção: menos de 1 segundo, excepto quando está ao lado de um carro conduzido por uma Queque (ver abaixo). Neste caso o tempo de reacção chega a ser de 4 segundos.

3. O Construtor civil (construtoris rex)
Este tipo de condutor é fácil de identificar, sobretudo pelo tipo de carro que conduz. Trata-se quase invariavelmente de um Mercedes classe C ou um BMW série 3, geralmente prateado embora também possa aparecer em preto. Fala constantemente ao telemóvel e não faz piscas. Não costuma hesitar antes de mudar de faixa, fazendo-o frequentemente mesmo à frente dos outros carros. Nunca está na faixa certa e é frequente vê-lo a pisar as raias para se meter à frente na fila, como quem não quer a coisa. O seu habitat natural são as faixas da esquerda das auto-estradas, encostados ao carro da frente (mas não tanto quanto o xuning). Nesta situação é vulgar vê-los a piscar umas luzes de que dispõem na frente do carro, numa tentativa de intimidação ou marcação do território. Tempo de reacção no semáforo: 2 segundos.

4. O Rei do Xuning (palhaçus maximus)
Este indivíduo é um must das estradas portuguesas. Os seus carros de eleição são o Peugeot 106, o Citroen Saxo ou o Honda S2000, rebaixado, com vidros fumados e escapes racing. As jantes do carro são também muito características: tipicamente sobredimensionadas quer em raio quer em largura, chegando a exceder os limites laterais do carro. Pensa-se que este tipo de características fisionómicas são úteis no processo de acasalamento. Os machos desta espécie envolvem-se em violentas disputas, conhecidas como corridas, pelo direito a acasalar com as fêmeas que observam a luta e no fim escolhem o vencedor. Outro traço distintivo são os autocolantes no pára-brisas (geralmente de marcas de material para surf ou outros desportos do mesmo género) e pelo inconfundível barulho que produzem à sua passagem. É um ser noctívago, embora seja possível encontrá-lo durante o dia. Os melhores pontos de observação deste indivíduo são as faixas da esquerda de qualquer via rápida, embora sejam difíceis de detectar por se encontrarem quase sempre imediatamente atrás de outro carro, a muito curta distância, ou na bomba de gasolina a meter mais 20 euros na máquina para ver se conseguem fazer os 10 km até casa. Tempo de reacção no semáforo: 0 segundos (e arranca a fazer chiar os pneus)

5. O Chico-esperto (chicus espertus)
O protótipo deste indivíduo é uma sub-espécie denominada o Taxista (taxistus chicus espertus). A sua viatura habitual é um Mercedes embora possa ser encontrado em outros modelos, de gama média, com 10 ou mais anos de idade e frequentemente adquiridos no mercado de importação paralela. A sub-espécie Taxista desloca-se em viaturas de cor creme. Os restantes elementos da espécie podem ter carros de qualquer cor, o que torna difícil a sua identificação. O seu comportamento em estrada pode ser muito variado. É raro encontrá-los na faixa da direita, a menos que as restantes faixas estejam engarrafadas. Um traço característico desta espécie é o facto de nunca se encontrarem na faixa mais adequada ao trajecto que pretendem, mas sim na faixa mais vazia (tem uma enorme aversão a territórios densamente povoados). Existem diversos relatos de chicos-espertos que fazem mais de 3 quilómetros com o pisca da direita ligado ultrapassando longas filas de trânsito. Esta é aliás a única ocasião em que os seres desta espécie utilizam o pisca. Estes indivíduos possuem uma deficiência genética que os torna incapazes de distinguir uma linha contínua de uma linha descontínua (conhecida como "imbecilite motora"). Por essa razão são vistos frequentemente a cortar 4 faixas para a saída pretendida ou a realizar longas distâncias pela berma da via rápida em hora de ponta. São fáceis de encontrar nas grandes selvas suburbanas. As suas rotas migratórias incluem frequentemente as grandes vias congestionadas como o IC19 ou a A5. Constituem a espécie mais numerosa deste ecossistema. Tempo de reacção num semáforo: tipicamente arranca com o semáforo ainda vermelho.

6. A Tia (Platinadus Cascais)
A tia é uma espécie perigosa na estrada. Principalmente devido ao seu tamanho, uma vez que é frequente conduzirem jipes de grandes dimensões (os Porsche Cayenne não são muito comuns, mas os Range Rover ou BMW X3 e X5 são muito frequentes). Estes seres tem várias características interessantes. Por exemplo a utilização do espelho retrovisor, frequentemente usado numa posição diferente da dos outros veículos, para permitir retocar a maquilhagem. Este é o principal traço que permite identificar as tias que por aí andam. Isso e o cabelo, frequentemente louro platinado. É preciso ter muita atenção a este tipo de condutor uma vez que, à semelhança dos seres da espécie construtor civil, só muito raramente fazem o pisca. Habitat preferido: faixa do meio da A5 e 2ª circular. Tempo de reacção num semáforo: até à primeira buzinadela do carro que está atras. Em geral está a retocar o rímel e não olha para o semáforo.

7. A Queque (quequis rebeldis)
Esta espécie tem intrigado os especialistas. Não se conhecem casos de reprodução nesta espécie embora tenham sido avistados alguns exemplares aparentemente prenhes na A6 a caminho de Badajoz. Pensa-se que são descendentes das tias e que queque seja apenas uma das suas fases de crescimento antes da idade adulta, tipo a crisálida nos insectos. Contudo, alguns especialistas defendem que estes seres são uma espécie inteiramente nova. São habitualmente encontradas ao volante de viaturas utilitárias de gama média (Volkswagen Golf, Audi A3, Peugeut 306, etc.), por vezes com tecto de abrir ou descapotáveis. As viaturas têm todas leitor de CD e muitas vezes iPod. Estas criaturas são fáceis de identificar pelo facto de nunca serem vistas em ruas pequenas durante o dia, apenas se deslocam nas principais avenidas. À noite, contudo, é frequente encontrá-las em bando perto de zonas de diversão nocturna. À semelhança da espécie dos construtures civis, as queques também falam insistentemente ao telemóvel. Tempo de reacção: 5 ou mais segundos. A queque raramente olha para os semáforos. Costuma estar a mudar o CD ou a sintonizar a Mega FM e não se pode preocupar com essas coisas.

8. O Recém-encartado (putus imberbis)
Este indivíduo é mais ou menos como as células estaminais: ainda não é claro a que espécie irá pertencer; por isso é geralmente classificado à parte. Pode começar desde muito cedo a apresentar comportamentos de outras espécies, como os xuning ou as queques, mas há alguns traços que são fáceis de identificar: fazem pisca para a esquerda à entrada das rotundas e para a direita quando vão sair da rotunda, páram nas passadeiras e são os únicos indivíduos que conhecem todas as prioridades nos cruzamentos de um bairro. Além disso são também a segunda espécie que mais facilmente deixa o carro ir abaixo nas subidas (a seguir aos velhos, ver abaixo). Os pontos fracos desta espécie dizem exactamente respeito às subidas. É comum ver os membros desta espécie a deixar bastante espaço para o carro da frente nas subidas, porque ainda não dominam a técnica do ponto de embraiagem. Por causa disso é sempre vantajoso conseguir identificar estes indivíduos. Há uma boa probabilidade de lhes passar à frente sem ter de fazer um grande esforço. Tempo de reacção: menos de 1 segundo antes de deixar o carro ir abaixo. O recém-encartado ainda se lembra das aulas de condução e não tira os olhos do semáforo. 2 a 3 minutos até arrancar, 4 semáforos vermelhos depois. O recém-encartado é também a única espécie que nunca recebe o Metro, o Destak ou o Diário Desportivo, porque como está concentrado a olhar para os semáforos nem repara que estão a dar jornais à borla.

9. O Velho (velhus nojentus)
Esta espécie é cada vez mais frequente nas estradas portuguesas. Acredita-se que o seu sucesso está na sua elevada taxa de sobrevivência aos acidentes na estrada. Os velhos são fáceis de reconhecer porque são a única espécie que é ultrapassada por um xoninhas. É também a única espécie que se desloca mais devagar de carro do que a pé. São também exímios na arte da condução em contra-mão nas auto-estradas e em nunca olhar para os espelhos. São um elemento importante do ecossistema por provocarem acidentes que vitimam os outros tipos de condutores, contribuindo assim para o controlo da população. Geralmente podemos encontrá-los em viaturas com uma idade aproximada à do condutor. Tempo de reacção no semáforo: tipicamente o velho não vê o semáforo, por isso não chega a parar. É importante ter este facto em linha de conta quando passamos no semáforo verde.

10. O Ilegal (dreadus damaius)
Este tipo de condutor é também uma espécie perigosa, à qual devemos prestar atenção. São por vezes confundidos com os xunings, mas a diferença salta à vista quando escutamos com atenção: o xuning costuma ouvir techno em altos berros; o ilegal costuma ouvir kizomba em altos berros. Algumas sub-espécies ouvem hip-hop em altos berros. Os carros são em geral velhos e com bastante ferrugem e marcas de acidentes recentes. Pensa-se que estas cicatrizes fazem parte de um violento ritual de acasalamento desta espécie. Ou isso ou porque estes indivíduos não têm carta de condução. Há casos, contudo, em que ilegais são vistos em carros muito pouco característicos da sua espécie, provavelmente roubados a outros condutores, mais ou menos como o caranguejo eremita que rouba cascas a outras espécies. Pensa-se que é uma espécie de camuflagem usada quando estão a fugir de predadores, nomeadamente a polícia. Os cuidados nunca são demais com esta espécie. Deve-se agir com cautela e usar sempre a máxima: a prioridade é sempre do ilegal. Tempo de reacção no semáforo: mestre da arte da camuflagem o ilegal consegue imitar o comportamento de qualquer outra espécie, podendo ter tempos de reacção muito variados. Quando acossado por um predador costuma imitar o comportamento dos velhos e não parar no semáforo vermelho. Outro traço característico é o facto de também não fazer piscas.

Estas são as 10 principais espécies de condutores que se podem encontrar em Portugal. Existem também muitos híbridos, que não descrevemos por falta de tempo, que exibem partes do comportamento de uma espécie e partes do comportamento de outras. Não se sabe quais destas misturas são biologicamente viáveis e quais não são. Acredita-se que algumas misturas são inviáveis (por exemplo um velho e uma tia, ou um xuning e uma queque) mas há espécies que parecem cohabitar com sucesso e produzir larga descendência (o caso mais célebre é o acasalamento tia-constutor civil).

4 comentários:

Anónimo disse...

ora aqui está algo que já fazia muita falta!

Restelo disse...

LINDO!!

Rui Pereira disse...

Muito bom, sim senhor. E sim, ja alguem se tinha lembrado de fazer algo semelhante ;)

Nelson disse...

bem me parecia que era uma ideia boa demais para ser 100% original... vou ler o post dos Macacos. :)