Este post faz parte de uma série dedicada à participação portuguesa nos Jogos Olímpicos de Pequim. É aconselhável ler também os posts anteriores.
Há quatro anos Francis Obikwelu, então atleta português recém-naturalizado, ganhou uma medalha de prata nos 100m nos Jogos Olímpicos de Atenas. A prova foi transmitida em directo no Telejornal e assim que terminou, a grande manchete era "Primeira medalha olímpica portuguesa na velocidade".
Há 4 anos ninguém tinha dúvidas que Obikwelu era português, que a sua medalha era portuguesa. Contudo...
Este ano foi diferente. Foi com a eliminação de Francis Obikwelu nos 100m e consequente abandono da carreira internacional, anunciado minutos depois, que me divorciei completamente da comunicação social portuguesa. Foi nesse momento que achei que a coisa tinha, pura e simplesmente, passado das marcas. E depois só piorou.
1. Após a eliminação, a pivot do programa Desporto 2, transmitido na RTP2 paga com o dinheiro dos contribuintes portugueses, conseguiu a proeza de se referir a Francis Obikwelu como "o atleta nigeriano"; na frase seguinte, Obikwelu passou a "luso-nigeriano" e na frase seguinte já era "atleta português de origem nigeriana". Não, isto não se admite! Nenhum órgão de comunicação social pode, por um lado, dizer que são "vitórias nossas" e no momento seguinte referir-se às "derrotas deles". Muito menos um órgão de comunicação social do estado, pago com dinheiros públicos e obrigado a prestar serviço público.
2. Poucos dias mais tarde, Naide Gomes que até ao momento era uma "atleta portuguesa" foi eliminada na qualificação do salto em comprimento. Em todas as notícias que li, nomeadamente no site do Público, a sua origem "são tomense" foi referida. Em TODAS as notícias, ela foi "atleta portuguesa de origem são tomense".
3. Gustavo Lima, que ao longo de toda a competição da classe Laser foi o "velejador português" passou subitamente, ao perder o pódio por 1 ponto, a ser "o velejador português nascido no Rio de Janeiro". No site do Público.
4. Talvez em virtude da onda de protestos que estes comentários depreciativos acerca da naturalidade dos atletas desencadearam, Nelson Évora passou a ser, em TODAS as notícias, referido como "atleta português, nascido na Costa do Marfim e filho de cabo-verdianos". Assim os órgãos de comunicação social defendem-se das acusações de parcialidade, referindo a naturalidade estrangeira de um atleta apenas quando perde.
Foi vergonhoso. É uma vergonha ver os órgãos de comunicação social a referir a naturalidade dos atletas, mas apenas de alguns. Porque ninguém disse, em nenhuma das notícias, qual a naturalidade de Vanessa Fernandes (é de Perosinho, Vila Nova de Gaia). O tema só surge quando se referem à sua família, que ainda lá mora, à forma como os seus conterrâneos vêem as provas, à festa que ocorreu em sua homenagem. A naturalidade de Vanessa Fernandes não é relevante quando se dá uma notícia sobre a sua participação numa prova, tenha corrido bem ou mal. Porque há-de ser relevante a naturalidade de Francis Obikwelu, Naide Gomes, Nelson Évora ou Gustavo Lima? A naturalidade de um atleta nascido em Braga, Castelo Branco, Almada, Coimbra ou Funchal é tão relevante quando a de um atleta nascido na Costa do Marfim, Nigéria, Guiné Bissau, Brasil, França ou São Tomé e Príncipe.
Os órgãos de comunicação social perceberam bem que meteram a pata na poça pela quantidade de comentários a esse respeito. E por isso salvaram a face referindo a origem Costa-marfinense de Nelson Évora. E podem dizer descansados que "não é só quando perdem, fizémos isso com todos!". O único problema é que... esqueceram-se de alguns: Jessica Augusto nasceu em França e Edivaldo Monteiro nasceu na Guiné-Bissau. Esqueceram-se de referir a naturalidade destes dois quando noticiaram as respectivas eliminações. Para a próxima, tomem nota das naturalidades dos atletas todos, podem vir a ser úteis.
E para terminar, uma pequena nota: considero meu compatriota todo aquele que assim tenha nascido e não manifeste vontade de deixar de o ser; e todo aquele que não o sendo de nascença manifeste a vontade de passar a sê-lo e assim concorde o Estado Português. A partir do momento em que o Estado Português reconhece alguém como meu compatriota, então, sê bem-vindo! Pelo que vi há tanto português "de gema" com vergonha de o ser que abraço qualquer estrangeiro que, tendo melhores opções, opta pela nacionalidade portuguesa. Não me importa onde nasceram. Isto também vale para futebolistas como Pepe, Deco (ambos brasileiros de origem), Bosingwa ou Makukula (ambos da República Democrática do Congo, ex-Zaire).
Notas:
- Francis Obikwelu nasceu na Nigéria, naturalizado português a partir de Outubro de 2001; radicou-se em Portugal em 1994, com 16 anos de idade.
- Nelson Évora nasceu na Costa do Marfim e é de ascendência cabo-verdiana; vive em Portugal desde os 5 anos de idade, tendo-se naturalizado português em 2002 (com 18 anos)
- Naide Gomes nasceu em São Tomé e Príncipe e naturalizou-se portuguesa em 2001. Vive em Portugal desde os 11 anos de idade.
- Gustavo Lima nasceu no Rio de Janeiro. Pelo que percebi, é português de nascença, tendo a família regressado a Portugal quando ainda era criança.
- Edivaldo Monteiro nasceu na Guiné-Bissau e reside em Portugal desde os 10 anos de idade. Naturalizou-se português aos 23 anos (em 2000 ou 2001, não conseguir determinar a data precisa).
- Jessica Augusto nasceu em França, mas pelo que pude determinar, desde sempre foi portuguesa. Não conseguir perceber desde quando reside em Portugal.
- Nelson Sousa (eu) é português desde que nasceu, em 1977, em Leiria. Viveu toda a vida em Portugal (Leiria e Lisboa), excepto durante 1 ano em que morou em Estrasburgo (França). E não se sente mais português que nenhum dos referidos acima.
Nota adicional: protestei junto do provedor do tele-espectador da RTP, contra o tratamento dado a Obikwelu pela pivot do Desporto 2. A resposta que obtive é que, em virtude das inúmeras queixas de espectadores sobre a cobertura da RTP aos Jogos Olímpicos, o provedor vai dedicar o seu programa de 6 de Setembro integralmente ao tema.
31 agosto 2008
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3 comentários:
Ora bem, tenho então de tentar perceber esse programa do provedor (mas duvido que lhe metam uma legendagem decente...). Porque, não foi só meter a pata na poça...foi meter as duas patas, as pernas, o pescoço, a cabeça...que credibilidade esperam ter agora?
Giro, giro é a capa da NS (revista do diáriode noticias,salvo engano motivado pela hora, é que pra mim, de manhã é prá caminha...) com o Marco Fortes!!! Na caminha!!!! Delirante, e é um muito bem feita à comunicação social e ao COP,que fez dele um bode respiratório, como o próprio afirma, reconhecendo contudo a infelicidade da escolha de palavras: já devia saber que a comunicação social iria trucidá-lo e que o povo quer é sangue...mas diz quem o conhece que a piada teve piada.
Já agora, os atletas portugueses que ganharam medalhas passaram de "portugueses" a "portugueses e benfiquistas". No entanto, com o Marco Fortes, resumiu-se a "atleta sportinguista". Santa clubite, não?
é verdade, os clubes a que pertencem foram bastantes vezes referidos. Contudo, não acho a informação totalmente irrelevante. Em vez de dizeres sempre o nome do atleta ou referires "o atleta português", dizes que é "o atleta do clube tal". Não vejo aí grande mal, desde que seja constante. O texto fica melhor, em termos estilísticos, ir alternando a forma de tratamento ao sujeito da notícia.
Por coincidência (ou não ;) isto é a minha clubite a falar), os dois medalhados são atletas do Benfica. Mas desde o início que, por exemplo no Público, era referida a filiação clubística de todos os atletas (no atletismo e não só), fossem obtidos bons resultados ou não.
Não é informação particularmente relevante, mas mesmo assim é mais razoável referir o clube que a cidade de nascimento.
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