30 maio 2008

Contra (?) o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa - Parte III

Parte III - o conteúdo do famigerado Acordo Ortográfico da Língua Portugesa e as suas reais implicações na forma de falar e escrever português.

Introdução - O que é a ortografia

Para começar, e porque o que não falta por aí é confusão, ortografia diz respeito apenas à escrita de palavras. A forma como são escritas. Não diz respeito aos seus significados, nem às suas utilizações, nem à sua pronúncia, nem à sintaxe de uma frase.

Não existe NENHUMA alteração introduzida pelo acordo ortográfico que altere a forma como uma determinada palavra é LIDA, apenas altera, eventualmente, a forma como é, ou pode ser, escrita.

Os capítulos que se seguem descrevem as reais implicações do acordo ortográfico, da forma que entendo o texto do acordo (que li, pelo menos na diagonal). O acordo ortográfico tem 21 capítulos. Obviamente não vou tratar todos, quem quiser ler o acordo pode fazê-lo por sua iniciativa (o link está abaixo). Mas vou tentar dar um ou outro exemplo das principais alterações para que se percebam as suas implicações.

Capítulo I - O alfabeto

Com o novo Acordo Ortográfico o alfabeto português passa a ter 26 letras. K, W e Y passam a ser letras do alfabeto português. Curiosamente o K e o Y já existiam antes da reforma ortográfica de 1911, quando foram suprimidas. Portanto, vamos poder escrever whisky, kafkiano ou wagneriano sem ter de criar (mais uma) excepção à ortografia. Sim, quando aprendi a escrever aprendi que o abcedário tinha 23 letras e agora volta e meia escrevo as letras k, w e y que, tanto quanto sei, não fazem parte da ortografia portuguesa.

Capítulo II - O H inicial e final.

Circulam por aí mails a dizer que entre outras coisas, começa a escrever-se úmido em vez de húmido e até, pasme-se, oje em vez de hoje ou omem em vez de homem. Esta informação é FALSA. Para já nem no Brasil se escreve umidade. Escreve-se humidade. O H inicial só desaparece em palavras derivadas em que o H inicial desapareceu da raiz da palavra.

Por exemplo: Erva evoluiu de Herba; As palavras derivadas como Herboso ou Herbanária mantêm o H inicial da raiz. Nestes casos cai o H inicial. Passa a escrever-se Ervanária e Ervoso. A propósito, não sei como vai passar a escrever-se Herbáceo.

Quem escreve Herbanária em vez de Ervanária?

Cai também o H quando duas palavras são aglutinadas, sendo a segunda iniciada por H. Por exemplo, Desumano, Lobisomem, Biebdomadário, Inábil. Alguém quer os H ali espalhados no meio das palavras?

SÓ NESTES CASOS É QUE CAI O H.

Capítulo III - As famigeradas consoantes mudas C e P.

Ao contrário do que circula, palavras como Neptuno, Amígdala, Apto, Aritmética, Indemnização VÃO CONTINUAR A ESCREVER-SE DA MESMA FORMA.

As consoantes só caem quando são MUDAS! E mudas quer dizer que não são pronunciadas.

Citando o texto oficial do acordo, estas consoantes "eliminam-se nos casos em que são invariavelmente mudos nas pronúncias cultas da língua: ação, acionar, afetivo, aflição, aflito, ato, coleção, coletivo, direção, diretor, exato, objeção; adoção, adotar, batizar, Egito, ótimo", mas "conservam-se nos casos em que são invariavelmente proferidos nas pronúncias cultas da língua: compacto, convicção, convicto, ficção, friccionar, pacto, pictural; adepto, apto, díptico, erupção, eucalipto, inepto, núpcias, rapto".

Há casos em que as consoantes passam a ser opcionais (opcional mantém o P!): aspecto e aspeto, cacto e cato, caracteres e carate­res, dicção e dição; facto e fato, sector e setor, ceptro e cetro, concepção e conceção, corrupto e corruto, recepção e receçâo. Porque dependendo da pronúncia há quem leia estas consoantes e há quem não as leia.

Naqueles exemplos referidos em que a consoante cai, digam-me: alguém pronuncia a consoante em causa? Alguém lê o P em óptimo ou Egipto, o C em colectivo, director ou exacto, acto ou ação?

As consoantes mudas têm um papel: o de abrir a vogal que as precede. Mas... nesse caso a palavra "actual" não devia ser lida "á-tu-al"? Quem diz "á-tu-a-li-da-de"? Então para que raio está lá o C? E gostaria de relembrar que até 1910 escrevia-se aqui e no Brasil, Diccionário em vez de Dicionário e Prompto em vez de Pronto. Foi a nossa reforma ortográfica de 1911 que começou com esta coisa de eliminar consoantes mudas.

Capítulo IV - Acentuação

Eh pá, aqui é uma salganhada. Mudam imensas regras, ocorrendo a maior parte das mudanças no Português do Brasil, pelo que percebi. Excepção: pára, do verbo parar, perde o acento. Também aqui nada de mal, antigamente escrevia-se Pôrto em vez de Porto, para não confundir com porto do verbo portar, e tôdo (de totalidade) em vez de todo, para não confundir com o todo que era uma espécie de pássaro do Japão ou lá o que é. A existência de regras para a acentuação e a eliminação da quantidade exorbitante de excepções implicava que cada pessoa tinha de conhecer o vocabulário de forma quase enciclopédica para saber como acentuar algumas palavras.

Cai o trema, finalmente! Lingüiça passa a Linguiça. Note-se que a regra diz que em gue e gui, que e qui o U é mudo. Quando não o é, deve usar-se trema. Frequentemente, Linguiça, Aguentar, Bilingue, etc.

Também se deve usar trema, pela norma brasileira (que era a norma portuguesa antiga, antes de a alterarem), em palavras como Saudar, para indicar que au não é um ditongo.

O trema cai em todos os casos, excepto em palavras derivadas de nomes próprios estrangeiros.

Capítulo V - O hífen

Há uma série de novas regras que (finalmente) regulam a utilização de hífen. São aos pontapés, quem quiser que as leia. Do que li, a grande diferença para nós é a utilização com o verbo haver: Hás de, Hei de em vez de Hás-de e Hei-de. Não tenho grandes objecções aqui. E até pode ser que a próxima geração de putos deixe de ler "há-des".

Capítulo VI - Maiúsculas e Minúsculas

Os nomes dos meses do ano, estações do ano, pontos cardeais passam a minúscula. Também passam a minúscula palavras como "santo" ou "engenheiro", colocados antes de um nome: santo António em vez de Santo António, engenheiro Sócrates em vez de Engenheiro Sócrates (supondo que Sócrates é engenheiro).


Capítulo VII - Conclusão

Eh pá, depois de ler (como disse, só na diagonal) o texto do acordo ortográfico não estou assim tão horrorizado.

Este acordo ortográfico, bem como os que o precederam, marcam uma aproximação da língua escrita à língua falada, dando mais importância à pronúncia que à etimologia.

O português antigo era mais fonético e foi após a renascença que um conjunto de iluminados entendeu por bem dar à etimologia o papel fulcral que passou a ter nos séculos XVII e XVIII. Ficámos com uma língua muito erudita e com muito mau aspeto (palavra escrita segundo as regras do Acordo Ortográfico).


EU SOU A FAVOR DO ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA DE 1990.


Referências:
Texto oficial do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
Artigo de opinião de Manuel Mendes Carvalho (refere-se ao acordo de 1986 que fracassou, sendo substituido pelo acordo de 1990).

8 comentários:

Nelson disse...

Antes de escrever um comentário a insultar-me ou a prever o fim do mundo como o conhecemos, agradeço que investigue, por exemplo pesquisando no texto do acordo, se os exemplos que vai referir são, ou não, verdadeiros.

Teté disse...

Qual insulto, Nelson?

Li o acordo (já há uns tempos, note-se), achei que era "muito barulho por nada".

Mas para já vou continuar a escrever como sei, que em alguns casos fiquei com dúvidas. À medida que essas alterações forem surgindo no dia a dia, toda a malta se vai habituando. A única coisa que tenho contra o acordo é ser feito por decreto "a anteriori" da evolução normal de uma língua viva, embora em muitos casos seja uma consagração das regras para palavras já habitualmente usadas (desumano, desabitado, etc.)

Nos casos que referes, leio o P na palavra adopção, daí continuar a usar a letra na escrita.

E depois também uso expressões que não existem no dicionário e não me preocupa nada. Quem não gostar, não leia... :)))

Bom fim de semana para ti!

Nelson disse...

ah, é que já sei como isto funciona, e vai ser como os posts sobre as testemunhas de jeová: daqui a umas semanas começam a aparecer os anónimos que só lêem este post, não leram os dois anteriores, não lêem o acordo e assim que percebem que estou a favor começam a escrever comentários com os casos de que ouviram falar e a chamar-me nomes ;)

Nelson disse...

eu também vou continuar a escrever da mesma forma, por hábito e por não conhecer também os casos todos. além disso, ainda não entrou em vigor.

Anónimo disse...

Não vou comentar a minha concordância ou falta dela em relação ao acordo. Aproveito, no entanto, para tirar uma dúvida com quem leu o acordo. Vi há uns tempos numas notícias que sumptuoso iria passar a suntuoso. Ora, dizendo eu bem marcados o m e o p e achando que são essenciais na transmissão da sumptuosidade no som da palavra, fiquei horrorizada. Podes confirmar-me se sempre muda a escrita desta em particular ou não?

Nelson disse...

O P em sumptuoso é opcional. Pode escrever-se Sumptuoso ou Suntuoso.

Dá-me a ideia que no Brasil o P já terá caído, daí o teor facultativo.

Acho que é seguro adoptar a seguinte regra: se dizes a consoante, continua a usá-la. Se a consoante é efectivamente muda e nunca ouves ninguém pronunciá-la, elimina-a.

T. disse...

Conheço mais que uma pessoa que diz EgiPto...

Pedro Pinheiro disse...

Acho que a perda do trema é chata. Lá está, por uma questão de consistência com o objectivo do resto do acordo: adoptá-lo no português europeu resolveria todo um conjunto de ambiguidades (ou, devo dizer, ambigüidades?).

No que toca o foco na pronúncia versus etimologia, devo dizer que a ortografia manter-se focada na etimologia dá um jeito desgraçado para pessoas plurilingues. Saca-se os feriados por dias de santo muito mais facilmente. Mas pronto, verficando-se que o acordo tem realmente um fio condutor que é a harmonização da língua escrita com a falada, come-se.